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Evolução e tecnologia: qualidade do trigo gaúcho

Mudança do padrão da qualidade do trigo na última década no Rio Grande do Sul tem atendido a maior demanda da indústria por trigos de qualidade, melhorando logística e diminuindo necessidade de importação

O avanço na qualidade da farinha esteve associado ao esforço do melhoramento genético em combinar desempenho a campo com qualidade industrial

Nos últimos cinco anos tem se observado um maior entusiasmo pela cultura do trigo no Rio Grande do Sul, fato observado pelo crescimento gradativo de área. Em 2020 foram mais de 930 mil hectares semeados, segundo dados da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) e o mercado sinaliza uma perspectiva de que o Estado volte ao patamar de 2014, quando foram semeados mais de 1 milhão de hectares.

Para contextualizar a história da produção tritícola no RS é necessário relatar alguns acontecimentos que impactaram no cenário produtivo. Um marco importante foi a extinção do Decreto Lei 210 (de 1967) na década de 1990. O Decreto proibia a comercialização do trigo nacional ou importado pelo setor privado, regulamentava a comercialização estatizada e determinava ainda a medição da capacidade de moagem de cada moinho. Sem a regulamentação e intervenção estatal na cadeia do trigo, o país passou a ter acesso ao mercado externo e, por consequência, acesso a lotes de trigo com a qualidade demandada pela indústria brasileira. Em função disso, passou-se a importar um grande volume de trigo, e a produção nacional de trigo gradativamente foi caindo, desvalorizando do grão internamente. Em 1995, chegou-se a semear apenas 300 mil hectares no RS. Foi a menor área registrada nas últimas 4 décadas.

Diante desse cenário, a cadeia produtiva percebeu que na comercialização do trigo havia se criado uma diferenciação de preço entre o trigo importado e o trigo nacional em função da qualidade industrial. Neste momento, as empresas de melhoramento buscaram avaliar e entender essa realidade e fortaleceram seus programas buscando alcançar melhores índices de qualidade industrial, além de produtividade e segurança. Outro fator determinante foi o posicionamento como elo de mediação entre os produtores, armazenadores, moinhos e indústria, fazendo entender que a demanda é de todos nós consumidores. Exemplo disso é a comunicação direta com os moinhos, que tem acesso prioritário as amostras das linhagens da pesquisa para realização de testes de panificação e somente aquelas que tiveram resposta positiva são lançadas ao mercado, tornando mais eficiente o sistema produtivo.

No Rio Grande do Sul, em especial, a atuação ativa no desenvolvimento de cultivares adaptadas às condições de cultivo regionais foi decisiva para a mudança do cenário e o sucesso das últimas safras do grão, fazendo com que os produtores voltassem a acreditar e apostar na cultura.

 

Mercado do trigo

O trigo gaúcho se destina majoritariamente ao mercado brasileiro que é caracterizado pela maior demanda por farinha de panificação. Nos últimos anos, a panificação representou mais de 40% do total de trigo absorvido pelos moinhos em nível nacional. Dessa forma, o trigo gaúcho compõe ou responde por cerca de 18% do volume total consumido no Brasil (dados 2020) e precisa atender esse padrão de exigência de qualidade.

Sistema nacional de classificação do trigo

Para caracterizar a qualidade do trigo existem vários parâmetros que podem ser analisados. O Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA) estabelece na Instrução Normativa Nº 38, de 30 de novembro de 2010, os critérios para a classificação da qualidade, determinando categorias para o trigo: melhorador, pão, doméstico, básico e outros usos. Dessa forma, a cultivar precisa atingir valores mínimos para se enquadrar dentro de cada categoria. Quanto mais alta a categoria melhor é a qualidade do trigo para panificação.

A força de glúten ou índice W é um importante fator da qualidade e representa a capacidade que a rede de glúten tem em reter os gases gerados durante a fermentação na panificação. O glúten é formado a partir da união de proteínas de reserva do grão, as gluteninas e gliadinas. As propriedades visco-elásticas dessa rede de proteínas, dependem, portanto, da quantidade de proteína do grão e da qualidade e equilíbrio entre elas. A variabilidade para esses dois componentes, quantidade e qualidade de proteína, são utilizados no melhoramento genético para produzir trigos com W adequado para os mais diferentes usos.

Vale ressaltar que W não se correlaciona perfeitamente com performance de panificação. Outros fatores interferem na qualidade do produto final, como composição do amido, absorção de água entre outros. Sendo assim, normalmente são necessários testes complementares de panificação, onde são avaliados os mesmos parâmetros utilizados pelo consumidor final na escolha do produto.

Número de queda e germinação em pré-colheita

O número de queda é outro parâmetro importante para a qualidade do trigo e representa a atividade enzimática do grão. Elevada atividade enzimática compromete a panificação, tornando o grão impróprio para esse uso. A ativação das enzimas no grão pode ser desencadeada por diversos fatores ambientais, sendo o principal deles a chuva em pré-colheita, que dá início ao processo de germinação. Perdas associadas a chuva em pré-colheita eram comuns no passado. Em resposta a demanda por trigos de maior segurança, o melhoramento trouxe para o trigo gaúcho a genética para tolerância a germinação. É importante ressaltar que essa característica sozinha não garante a qualidade tecnológica da farinha, mas previne a perda caso ocorram chuvas em pré-colheita, que são comuns considerando a época de cultivo do trigo no RS.

Melhoramento genético e a evolução da qualidade do trigo gaúcho

O processo de melhoramento genético envolve a avaliação e seleção de centenas de linhagens todos os anos. Assim como para características agronômicas, é realizada também a avaliação da qualidade. Nesse processo, os materiais de pior qualidade podem ser descartados e os melhores, promovidos. Esse ganho genético pode ser visualizado analisando a evolução da participação de mercado das cultivares das classes pão e melhorador ao longo dos últimos anos.

Um levantamento feito pela Associação dos Produtores e Comerciantes de Sementes e Mudas do Rio Grande do Sul (APASSUL) com as principais cultivares comercializadas no Rio Grande do Sul entre os anos de 2006 e 2019, mostra a substituição de cultivares ao longo do tempo. Quando agrupadas por grupo de qualidade, a evolução das cultivares evidencia um claro entendimento do mercado sobre a importância da qualidade na cultura do trigo. Aproximadamente 40% do total de sementes comercializadas em 2006 eram de cultivares classificadas como trigo brando/doméstico com menos de 30% das cultivares na classe pão. Já o grupo melhorador correspondia a menos de 5%. Nos anos seguintes, é observado um declínio no interesse por cultivares da classe brando/doméstico, sendo o mercado dominado por cultivares da classe pão. A partir de 2013 houve um aumento expressivo na participação dos trigos melhoradores.

O avanço na qualidade esteve associado em parte pelo ótimo desempenho das cultivares dentro de cada período e o esforço do melhoramento genético em combinar desempenho a campo com qualidade industrial. De 2006 a 2008, duas as cultivares de trigo brando predominavam no mercado. Nos anos seguintes, surgiram mais opções dentro dos trigos pão, como Safira, Marfim, Ônix e Quartzo, variedades classificadas como Trigo Pão com boa aceitação.  Quartzo por exemplo, segundo dados da APASSUL, chegou a corresponder a mais de 50% do total de sementes de trigo comercializadas em 2011 no RS.

A partir de 2018, se observa o aumento do cultivo da cultivar de trigo melhorador TBIO Audaz, com a característica de unir o desempenho a campo com performance na indústria, em seu primeiro ano semeado em solo gaúcho já tinha 14% do total comercializado no Estado e, no ano seguinte, em 2019, alcançou 21% do total, auxiliando na mudança da realidade da qualidade do trigo gaúcho. A qualidade do TBIO Audaz é também reconhecida na Argentina e no Uruguai, onde a cultivar também é cultivada, sendo classificada como grupo 1 (Argentina) e URUTRIGO (Uruguai), que são os trigos de exportação e qualidade superior entre os trigos argentinos e uruguaios.

Mudança no padrão de qualidade

A exigência por qualidade fez com que o melhoramento trouxesse cultivares com maior força de glúten. É o caso das cultivares semeadas nos anos 2000, que apresentavam um índice W médio superior a 220, de classificação trigo Pão. Mais recentemente, na escalada em busca da excelência, o trigo gaúcho alcança um novo patamar de qualidade. Como já citado, TBIO Audaz, se diferencia por apresentar um índice W médio superior a 300 x 10-4 J e estabilidade farinográfica média superior a 14 minutos em amostras, classificado como trigo Melhorador. Com essas características de qualidade industrial pode-se obter também excelentes resultados em panificação industrial congelada.

 

Novas oportunidades para a qualidade do trigo – segregação

O que esse aumento de qualidade dos trigos gaúchos representa para o mercado? Como atender a demanda por produtos que exigem menos Força como bolo, massa e biscoito? Essa mudança de padrão de qualidade traz também a oportunidade para o mercado segregado de trigo. Trigos especiais que entregam a qualidade específica para produtos como biscoito já são realidade em muitos pontos de comercialização do grão. O segmento da indústria de biscoitos, por exemplo, movimenta mais de R$ 18 bilhões ao ano e consome 12% da demanda nacional de trigo.

Nossa triticultura está em constante evolução, dentro e fora da porteira. É preciso entender que o importante é garantir que a maior fração do mercado seja atendida com trigo de qualidade para panificação, reduzindo a necessidade de importação e simplificando a logística. Para produtos especiais, que requerem qualidade distinta, ou segmentos de panificação que requerem performance mais específica, a indústria pode sempre conseguir sua matéria prima através de contratos dentro de projetos especiais que garantam a qualidade do produto segregado. Isso vale para biscoito, massas, trigos branqueadores, ração, entre outros usos. Sob este modelo, podemos seguir melhorando a qualidade do trigo e do seu processo de recebimento e, assim, fazer do trigo gaúcho e de outras regiões uma matéria prima mais atrativa para a indústria, consolidando cada vez mais a qualidade do trigo nacional.

FONTE: site Biotrigo